segunda-feira, setembro 15, 2008

Franz Kafka - Um Artista da Fome (trecho)

Podia jejuar da melhor forma que lhe fosse possível — e ele o fazia –, mas nada mais poderia salvá-lo, as pessoas passavam por ele sem lhe dar atenção. Tente explicar para alguém a arte de jejuar! Não é possível fazê-la entender a alguém que não a sente. Os belos cartazes foram ficando sujos e ilegíveis, foram arrancados, e ninguém pensou em substituí-los; a tabuleta com o número dos dias jejuados, que nos primeiros tempos tinha sido renovada cuidadosamente a cada dia, continuava a ser a mesma fazia muito tempo, porque depois das primeiras semanas o pessoal ficou achando demais até mesmo esse pequeno trabalho; e desse modo, embora o artista da fome continuasse a jejuar, tal como outrora sonhara, e conseguisse fazê-lo sem grande esforço, tal como ele o tinha predito então, ninguém mais contava os dias, ninguém, nem mesmo o próprio artista da fome, sabia quão grande já era o seu desempenho, e o seu coração ficou pesaroso. E se alguma vez, nesse tempo, um passante que não tinha nada melhor o que fazer se detivesse, zombasse da velha cifra e falasse de fraude, isso era, à sua maneira, a mais tola das mentiras que a indiferença e a maldade inata pudessem inventar, porque não era o artista da fome quem fraudava — ele trabalhava honestamente –, mas era o mundo quem o defraudava de sua recompensa.

Mas passaram novamente muitos dias, e também isso chegou a um fim. Certa vez, a jaula chamou a atenção de um inspetor, e ele perguntou aos serventes por que essa jaula, que ainda tinha boa serventia, estava aqui abandonada, cheia de palha apodrecida; ninguém sabia, até que um deles, com a ajuda da tabuleta, conseguiu lembrar do artista da fome. Remexeram a palha com varas e encontraram o artista da fome no meio dela.

- Você ainda está jejuando — perguntou o inspetor, — quando é que você vai parar?
- Desculpem-me todos — sussurrou o artista da fome, e apenas o inspetor, que aproximou o ouvido da grade, o entendia.
- Certo — disse o inspetor, e pôs um dedo na testa, para dar a entender ao pessoal o estado do artista da fome, — nós o desculpamnos.
- Na verdade, eu queria que vocês admirassem o meu jejum — disse o artista da fome.
- E nós o admiramos — disse o inspetor, condescendente.
- Mas vocês não devem admirá-lo — disse o artista da fome.
- Ora, então nós não o admiramos — disse o inspetor — e por que não devemos admirá-lo?
- Porque eu tenho que jejuar; não posso de outro jeito — disse o artista da fome.
- Ora vejam só — disse o inspetor — e por que você não pode de outro jeito?
- Porque eu — disse o artista da fome, levantando um pouco a cabecinha, e falou fazendo um bico com os lábios, como para dar um beijo, diretamente no ouvido do inspetor, para que nada se perdesse, — porque não pude encontrar a comida que eu gosto. Se eu a tivesse encontrado, pode crer, não teria feito nenhum estardalhaço e teria comido até me fartar, como você e todos os outros.

Essas foram as últimas palavras, mas ainda nos seus olhos quebrantados estava a convicção firma, porém não mais orgulhosa, de que continuava a jejuar.

- Ponham ordem nisto tudo, finalmente! — disse o inspetor, e o artista da fome foi enterrado junto com a palha. Mas na jaula foi posta uma jovem pantera. Era um alívio sensível, mesmo para os de sentido mais embotado, ver nessa jaula tanto tempo deserta um animal jovem, jogando-se de um lado para o outro.

“Um artista da fome” (fragmento) (Franz Kafka, 1924). In: Humboldt. Instituto Goehte, n. 90. p. 21. 2005.

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